O guia do ciclista politicamente incorreto

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Este post está reproduzido no meu jardim digital.

— O que houve com você? Por que resolveu escrever este guia?

— Foram ideias incorretas que me ocorreram durante uma queda.

— Uma queda? De bicicleta? Como deu tempo para pensar em tanta coisa numa queda?

— Assim como quando Eva deu a maçã para Adão estava tudo já na mente do Deus Único Onipotente e Onisciente. Assim como quando Einstein caiu da escada a equivalência das acelerações ficou clara num lapso e consolidou sua teoria da relatividade geral. Mas já estava tudo lá.

— O Guia já estava com você? E o utilizava?

— Sim. Intuitivamente. Instintivamente. Paranoicamente.

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— E por que?

— Bem…começou bem antes da queda. Fui imprensado por um carro numa valeta na beira da pista e desgovernei-me. Caí atabalhoadamente atrás do carro que ou não me notou ou caiu fora de propósito. Ainda vi o branco de da sua tinta se afastando como um velejador solitário caído no mar vê seu veleiro se afastar cruelmente.

— O Guia traduz um ressentimento…

— Sim. Mas somente no início. Na verdade é um manual de guerrilha. Onde os ciclistas desistem, ou pelo menos o nosso ciclista politicamente incorreto, da guerra com os carros, de antemão perdida, e partem para uma atitude defensiva feita de atos, de pura ação, num flash mob coletivo e mudo, num incômodo ostensivo aos carros, os donos das ruas e da cidade.

— São mesmo. As cidades são construídas para eles e em torno deles. Se os carros fossem como as limos de Holy Motors falariam: “Somos os donos do pedaço!”.

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— Pois é. Mas como em Einstein minha teoria de relatividade geral da circulação das bicicletas, O Guia do Ciclista Politicamente Incorreto, surgiu bem antes na minha mente.

— Quando?

— Quando vi um conselho para que se andasse no acostamento na contramão das estradas. A pé ou de bicicleta.

— Foi o fiat lux

— Foi. O conselho se justificava de várias formas. A visão dos carros vindo de frente permitiria, na maioria dos casos, uma ação evasiva eficiente. Não teria também que virar o pescoço toda hora para ver se estava seguro. O monitoramento de frente seria constante.

— O único flanco seriam os carros ultrapassando…

— É verdade. Esta situação é similar a que ocorria ao andar pelo acostamento a favor do fluxo (menos na Inglaterra). Mas o ganho de se andar no acostamento contrário ao fluxo tinha vantagens superiores às desvantagens.

sempe1962-4— Mas nas ruas urbanas não há acostamento. Só sarjetas mal projetadas, mal construídas e mal conservadas.

— Isto é um empecilho. Uma desvantagem que leva à circulação em baixa velocidade, também para proteger os pedestres que, ao atravessar a rua, não costumam olhar para os dois lados e muito menos contar com uma bicicleta vindo pela contramão. Uma desvantagem compensada pelo extremo prazer que é andar de bicicleta. Eu fecho com Byrne quando ele diz:

Não ando de bicicleta para todo lugar por ser ecológico ou digno de nota. Faço principalmente pelo senso de liberdade e êxtase.

David Byrne

Vale a pena.

— Uma regra legal em algum lugar diz que os carros devem manter distância das bicicletas. E também para que tenham espelhinhos retrovisores, luzes de sinalização, capacetes no cocoruto dos ciclistas etc. Que andem na mesma mão dos carros também.

— Que não mais podem sentir a brisa refrescante num dia quente de verão. Por causa do capacete. Como se tudo isto fosse eficaz. Na verdade são pretextos para desconsiderar os direitos daqueles que estiverem irregulares.

— São para a proteção.

— Qualquer ciclista que as cumpra a risca e não siga o meu guia é candidato a mártir. Pelo menos nos lugares que vivi em meu país. No exterior também há uma guerra mas medidas de proteção melhores também, em alguns lugares. Por exemplo, já andei na frente de um ônibus numa faixa compartilhada, marcada no chão, sem que tivesse que me apressar em demasia. É claro que andei rápido, favorecendo o ônibus e a mim mesmo por chegar mais depressa ao meu destino. E com segurança.

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— Mas existem leis…

— Feitas por legisladores que estão lá pensando em seu carrões enquanto mentalmente reproduzem normas afeitas ao carros e inaplicáveis às bicicletas. Enquanto isto não tocam na arquitetura urbanística das cidades.

— E o Guia não poderia se tido como uma apologia da transgressão?

— No meu guia é mostrado claramente que a transgressão é conceitual e literária. Não aconselhamos a fazer isto em casa, quer dizer, nas ruas. Como pedimos às crianças que não imitem o Superman e saiam voando pela janela. O problema é que, diferentemente do voo sem asas do super homem, a estratégia do guia é vencedora. É de guerrilha. Não para derrotar os carros. Mas para apontar que há novos modos de convívio com eles, antes que desapareça o uso deles na forma atual. Antes que a arquitetura das cidades se tornem melhores para as bicicletas. Pois para os carros já seria boa se eles não fossem tantos.

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— Mas fale do que há no Guia.

— O guia é muito simples. Os princípios são poucos. Como num decálogo mosaico. Mas cobrem a maioria das necessidades.

— Pode enumerá-los?

— Vou também justificá-los…

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O primeiro mandamento é “Não andarás na mão ou o cuspirei da minha boca. Se fores morno e andares na mão o massacrarei transformando em metal retorcido a sua magrela e em carne imprestável o seu corpo.”

— Como se justifica?

— Um mandamento é um mandamento. Alguém já viu Moisés se justificando?

— Você é o Moisés das bicicletas?

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— Sou mas me justifico. Houve um estudo que mostrou que os carros se aproximam mais de quem está de capacete numa bicicleta do que dos ciclistas que não o usam (Veja em português). Tentou-se um explicação que restaurasse a racionalidade deste fato esdrúxulo. Não seria humano pensar que os motoristas queiram penalizar os que usam capacete levando mais perigo aos mesmos. Optou-se por imaginar que os motorista consideravam os que estavam sem capacete mais “maluquinhos” e com comportamento mais caótico. O que os levava a afastar-se mais. O mesmo se dá com o ciclista na contramão. Observamos em nossa experiência que os motoristas dedicam mais atenção e cuidado com os ciclistas na contramão. São mais visíveis. Enquanto que os que vão na mão parecem vestir um manto da invisibilidade e serem vistos mais como um estorvo. Parece que contato visual frente a frente faz os motoristas respeitarem mais o ciclista. Ou porque o estão encarando ou por parecerem malucos.

— Muito interessante…

— O segundo mandamento nas vias é “Não cruzarás como os carros mas como os pedestres pegando carona nos seus privilégios já conquistados: Zebras e semáforos com acionamento por botão, onde houver.”

— E a pena?

— Sempre a mesma citada no primeiro mandamento.

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— E o terceiro?

— Uma variante do segundo. “Onde não houver o botão do semáforo desça da bicicleta e misture-se com os pedestres para obter mais proteção. Se não houver pedestres muito cuidado para não fazer parte de um strike do boliche dos carros mesmo quando estiver atravessando na faixa.”

— Puxa!

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— O quarto é uma tática para cruzamento de vias onde não há faixas mantendo-se na contramão: “Manterá-se na contramão ao cruzar a via mantendo, desta forma, no visual frontal os carros que vem da frente e depois, os carros que vem na via da esquerda onde você faz uma pequena entrada antes de cruzar a via afastado da complicação do cruzamento com várias direções a serem controladas. A única exceção à visualização de frente ocorrerá quando tiver que olhar sobre os ombros para ver os carros que vem da direita do cruzamento e que ficarão atrás quando fizer a pequena entrada.”

— Mas isto tornará cada cruzamento um processo lento.

— Sim. Mas lembra da guerrilha? O tanques em suas lagartas andam rápido mas os guerrilheiros a pé são mais ágeis e penetram em espaços mais confinados. Andar rápido de bicicleta numa arquitetura desfavorável da cidade é flertar com o diabo. Nem sempre o melhor caminho é a linha reta. Aqui menos não é mais. Caminhos mais longos são muitas vezes mais prazerosos e favoráveis ao serendipity. Às vezes o maior caminho é melhor, desde que seguro. E a paisagem pode ser melhor. Evite ruas com muito trânsito e horários de rush. Neste momento os motoristas estão ansiosos para chegar no trabalho e vêm as bicicletas como um estorvo pilotado por “vagabundos” que não tem que chegar na hora para atender ao patrão ou aos próprios negócios. Embora mais gente queira ir para o trabalho de bicicleta. Escolha ruas alternativas onde não haja muitos carros em circulação. Principalmente nos horários de rush quando os motoristas apressados e estressados tendem a não prestar muita atenção em você, um completo empecilho.

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— E o quinto mandamento?

— Este é mais geral: “Fuja das vias e do confronto direto com o inimigo, os carros.”

— Como é uma guerrilha onde fica o confronto indireto?

— Por incrível que pareça são os pedestres que, compartilhando as calçadas com as bicicletas, se tornam a consciência pública antagônica aos carros, também seus inimigos. São tolerantes com as bicicletas nas calçadas se não há ciclovia. Experimentei este sentimento várias vezes quando pedestres nas calçadas pedem desculpa por estar fazendo que você espere pelo espaço para circular ao lado deles. Mas uma regra de ouro é que na calçada o pedestre é o rei. Nada de ameaçá-lo com movimentos caóticos e zigue-zags. Andar devagar é o melhor quando houver risco de colisão. Parar e esperar a decisão do pedestre sobre o compartilhamento do espaço. Raras vezes o pedestre me mandou ir para a rua. O confronto direto com os pedestres na verdade gera aliados contra a selvageria dos carros. Muitos pedestres também são ciclistas ou desejam se tornar.

Realmente, o tráfego desenvolveu-se no sentido de uma espécie de Moloch, que, ano sim, ano não, devora uma soma de vítimas que só se podem comparar às da guerra. Estas vítimas caem numa zona moralmente neutra; o modo em que são percebidos é de natureza estatística ; «Como é possível que, num tempo em que se luta em torno da cabeça de um assassino com a oferta completa de mundividências contrapostas, quase não esteja presente uma diferença de tomada de posição em relação às incontáveis vítimas da técnica, e particularmente da técnica do tráfego? Que tal não tenha sido o caso desde sempre, isso pode-se ver facilmente a partir da versão das primeiras leis do caminho-de-ferro, em que claramente se expressa o esforço para tornar responsável o caminho-de-ferro por qualquer dano que se dê puramente pelo facto da sua presença. Hoje, pelo contrário, impôs-se a concepção de que o peão não apenas se tem de adequar ao tráfego, mas também de que ele é imputável pelas infracções contra a disciplina do tráfego.

Notas:

  1. Boa parte das ilustrações neste post são do Sempé.
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